quarta-feira, 23 de novembro de 2011

O QUE DIZER E O QUE NÃO DIZER NA FRENTE DAS CRIANÇAS

Esse é um tema bastante controverso: o que dizer e o que não dizer na frente das crianças?
Bem, ao menos que você tenha conseguido construir uma redoma e afastado essa criança de todo e qualquer contato com o mundo externo, ela já viu e ouviu em poucos anos de vida, muito mais que você durante toda a sua infância, aliás, acredito que até mais que a infância.
Sei que vou parecer uma velhinha falando, mas, no meu tempo, esse acesso desenfreado à informação não existia. E eu nem sou tão velha assim, mas nasci antes do telefone ser uma coisa popular, de todo mundo ter televisão em casa, no tempo em que o vídeo-game mais moderno se chamava tele-jogo e eram apenas dois pauzinhos que batiam em uma bolinha, numa velocidade que hoje um bebê de seis meses ia achar irritante de tão lenta, mas, na época, era o máximo!
Cresci durante a ditadura militar e muitas coisas não podiam ser ditas em casa, aliás, em lugar algum, porque alguém podia desaparecer se dissesse algo considerado subversivo. Nem sei se essa palavra existe ainda.
Por isso havia todo cuidado com o que era dito na frente das crianças. Assistia-se pouco à televisão, ouvia-se bastante rádio e conversava-se muito. A voz era o principal condutor de notícias, então ficava fácil selecionar os assuntos adequados às crianças. Lembro-me de uma expressão usada pela minha mãe quando queria conversar algo “de adulto” com as minhas tias: “tem pés descalços…”, isso significava que eu estava ali e, como tinha o péssimo hábito de divulgar as conversas, era usada a senha para não continuarem o assunto, ou melhor, continuarem na hora em que eu não estivesse por perto.
Século XXI chegou e a principal via de comunicação é a visual. Você até pode desligar a televisão, mas há o computador, o celular e o mundo. Há o grupo de iguais, os celulares e ipods dos amigos, as redes sociais e tantas outras mídias inimagináveis no século passado.
Afinal, o que dizer e o que não dizer na frente das crianças? Tudo. Tudo pode ser revelado desde que se leve em consideração que a criança é um cidadão e merece ser respeitado como tal, que tem o seu tempo de apreensão das coisas e que pode ter o acesso à informação, mas não tem vivência para decodificar. Por isso mesmo, quem tem uma criança em casa deve ter a generosidade de conversar com ela sobre o mundo que a cerca, sobre aquilo que ela vê e vive. Mas como cidadã que é, acima de tudo, a criança tem que ser ouvida e considerada porque ela dará boas pistas sobre o momento – e  a forma – que determinados assuntos poderão ou não ser aprofundados.
Não se pode ter medo dos temas que eram considerados tabus no século passado porque eles estão aí, espalhados no cotidiano: morte, medo, violência, diversidade enfim, todos aqueles que outrora os adultos calavam em frente aos “pés descalços”.
Acabei de ser apresentada a um livro que devorei em uma hora: FIGURINHA CARIMBADA, do brasileiro Márcio Araújo. É um livro em que crianças contam suas histórias de heroísmo da vida cotidiana, numa narrativa simples, sem fantasias, mas com a clareza necessária para que os leitores formulem suas questões e entrem em contado com o seu próprio heroísmo. Há o João que perde a mãe em um acidente de carro; o abastado Luiz Felipe que passa a ter uma imagem diferente do conceito de família quando se torna amigo do filho da empregada; o Ícaro, um menino que gosta de fazer teatro e, durante um show de fogos de artifício, fica cego, enfim são histórias que contam sobre a dor e a delícia de se estar no mundo. Um livro que fala de muita coisa difícil de ser dita, mas que alguém precisa falar. E o Márcio faz isso com maestria.
É importante que haja histórias de príncipes e fadas, mas há muito a ser dito além da fantasia.

terça-feira, 22 de novembro de 2011

EI, TEM ALGUÉM AÍ?

Ontem eu estava assistindo à TV Escola e me despertou especial interesse o comentário de uma professora que dizia que a literatura para crianças sempre foi considerada como um gênero menor, no entanto, o livro infantil requer uma série de cuidados que o livro dito para adultos não precisa ter.
Pus-me a refletir…
Sou uma leitora voraz, costumo debruçar-me até sobre manuais e bulas. Conservo até hoje um hábito adquirido na adolescência: a leitura de dicionários, portanto, tenho certo cabedal para avaliar a questão. Parafraseando Humberto Mariotti, vou evitar o automatismo do simplesmente concordar e discordar e partir para a complexidade que essa afirmação carrega dentro de si.
A literatura para crianças é introduzida na vida de seu público alvo em um momento crucial de formação de valores éticos e compreensão de princípios morais. Momento de desenvolvimento da crítica e da autocrítica e, não menos relevante, de formação do gosto estético e apreciação da arte, literatura incluída. Tendo isso como perspectiva, é de se esperar que haja cuidado com o que é lido para as crianças, mas esse não é um pensamento tão simples.
Não é função do livro ensinar as crianças, ele é uma ferramenta de diálogo entre o mundo da criança, aquilo que concerne ao seu interior e também ao seu círculo próximo de informação (pais, parentes, professores, amigos, TV, internet etc) e um mundo mais longínquo, com acontecimentos que não façam parte desse universo, mas que, de alguma forma, comuniquem-se com eles.
Posto dessa forma percebe-se a amplitude de “agentes educadores” que, juntamente com a literatura, participam da formação dos padrões infantis. Portanto não apenas o livro mas tudo que se apresenta às crianças deve ter um cuidado especial.
Mas o que fazer com crianças que estão no mundo, expostas às várias mídias existentes no século XXI, e que se ampliam dia-a-dia, trazendo informações que fogem completamente ao controle de pais e educadores.
Uma boa solução é formar pequenos questionadores, criar dentro das crianças um espírito de curiosidade que as provoque a criar uma pergunta a cada elemento novo que se apresente. Não aceitar cegamente aquilo que vêem como se fosse a verdade, porque a verdade é um entrelaçado de diversos elementos.
Recentemente li para o Pedro uma obra que trata isso de uma maneira sutil e absolutamente profunda: Ei! Tem alguém aí? (Editora Companhia das Letrinhas), de Jostein Gaarder, também autor de O MUNDO DE SOFIA.
Há uma máxima que ele expõe no livro que considero ponto de partida não apenas para a formação de pequenos leitores, mas para a vida como um todo: as perguntas são mais importantes que as respostas.
O livro narra a história do menino Joakim com outro menino, muito parecido com ele, só que vindo de um outro planeta, de nome Mika. O primeiro encontro dos dois já promove uma série de reflexões sobre a relatividade. Mika está pendurado, de cabeça para baixo em uma árvore e pergunta a Joakim porque ele está de cabeça para baixo. Joakim acha a pergunta estranha, mas Mika reflete:
Quando duas pessoas se encontram e uma delas está de cabeça para baixo, não é tão fácil dizer qual delas está na posição certa.
É disso que se trata, a formação de leitores não se dá na apresentação do livro, mas na apresentação do mundo. Crianças com espírito de investigação podem ler qualquer coisa “boa” ou “má” que saberá dizer com total tranqüilidade: “do meu ponto de vista, isso aqui está de ponta cabeça”

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Uma coisa puxa a outra...

Na semana passada chegaram  aqui em casa os livros da COLEÇÃO ITAÚ DE LIVROS INFANTIS. Não sei se conhece a iniciativa, mas basta se cadastrar no site do Itaú, preencher um cadastro e solicitar os livros gratuitamente. Mas essa ação é sujeita a disponibilidade no estoque. Esse é o segundo ano dessa campanha e eu e Pedro estamos acompanhando desde o início. Os livros do ano passado eu doei para um orfanato porque havia essa recomendação de que os livros não poderiam ficar parados e tinham que atingir o maior número possível de crianças. Eu e Pedro lemos até cansar e depois, doamos.
Bem, os livros chegaram e pusemo-nos a saborea-los. São três títulos: CHAPEUZINHO AMARELO, de Chico Buarque, com ilustrações de Ziraldo; ADIVINHA QUANTO, de Sam Bratney com ilustrações de Anita Jeram e A FESTA NO CÉU - UM CONTO DO NOSSO FOLCLORE, contado e ilustrado por Angela Lago. É sobre esse último título que eu vou escrever.
Eu conhecia esse conto há uns cem anos (hipérbole), mas eu conhecia as versões do Silvio Romero e do Câmara Cascudo. Aliás, vou abrir um parêntesis: outro dia eu peguei uma nota de cinqüenta mil cruzeiros e deu, por um lado, um orgulho de um país que homenageia seus intelectuais, mas, por outro, uma certa vergonha daquela ser uma nota sem nenhum valor, mesmo quando estava sendo impressa. Fecha parêntesis porque essa é outra história.
Muito bem, pus-me a ler o conto pelo olhar de Angela Lago, mas o conto em si — que conta a história de uma Tartaruga muito esperta que vai a festa no céu escondida dentro do violão de um Urubu-rei — não foi o principal alvo da minha atenção. Este post chama “Uma coisa puxa a outra…” por esse motivo.
Eu costumo ler tudo que está escrito no livro: editora, ano de edição, direitos de publicação, enfim, tudo mesmo e, na contra-capa havia uma informação muito interessante sobre Angela Lago:
Foi uma das primeiras ilustradoras a usar o computador para desenhar e uma das primeiras a fazer seu site na internet.
Lendo isso, o que eu fiz? Obviamente fui atrás do site de Angela.
Esse post é um convite a visitar o delicioso site de Angela Lago, uma senhorinha, nascida no pós-guerra que se diverte contando e desenhando histórias. O site é muito divertido e bem interativo. Há várias histórias contadas, jogos e ilustrações muito bonitas.
A propósito ela dá um depoimento muito bonito, com seu delicioso sotaque mineiro, no site do Itaú Social, o mesmo que você acessa para receber os livros, dizendo que "quer escrever com a sua voz infantil porque é a voz que conta as metáforas mais inusitadas, que tem uma poesia mais espontânea" que sua voz de adulta.
Eu, particularmente, considero que ter um filho pequeno é ganhar um convite para assistir, sentada no gargarejo, um desfilar de sabedoria.
Leia muito para uma ou algumas crianças, mesmo que estejam dentro de você.

domingo, 20 de novembro de 2011

O nascimento da cultura de dominação, segundo Riane Eisler

É comum incorporarmos dados que são inerentes à cultura como parte da natureza humana, mas estamos falando de instâncias distintas, a nossa natureza diz respeito diretamente ao nosso instinto de sobrevivência individual e de preservação da espécie. Mas como foi que construímos uma cultura que nos desloca da nossa natureza, uma vez que atuamos no meio de forma tão violenta?
A socióloga Riane Eisler, em seu livro O CÁLICE E A ESPADA (Editora Palas Athena) dá uma boa pista para reconhecermos esse processo.
Em seu livro, Eiler nos apresenta que quando os primeiros homens começaram a se questionar sobre de onde viemos, possivelmente ligaram nossa origem na terra ao ventre das fêmeas, uma vez que o fenômeno do parto se instaurava como uma analogia a própria criação, daí ser absolutamente compreensível que a primeira imagem humana cultuada fosse de uma Deusa.
“De fato, personificado pela Deusa, o tema da unidade de todas as coisas na natureza parece permear toda a arte do Neolítico, pois neste período o poder supremo que governa o universo era uma Mãe divina que dava vida a seu povo, oferecia a ele alimento material e espiritual, e, mesmo na morte, não deixava de receber seus filhos de volta a seu ventre cósmico.”
Os kurgan, povos indo-europeus ou arianos, o povo que será referência futura à Hitler, invadem as áreas próximas aos rios e trazem seus deuses masculinos da guerra e das montanhas. Esses povos desenvolveram a noção de propriedade, ao longo dos anos, pela hostilidade do ambiente em que viviam, frio, infértil e montanhoso.
“O valor supremo reinando do cerne do sistema dos invasores era o poder tirar a vida, e não o de dar a vida.”
A espada torna-se o símbolo do poder supremo, do secular e do sagrado.
A visão que se aprende na escola é de que estes povos guerreiros são o berço da civilização ocidental, ignorando completamente todo legado trazido por, pelo menos, 4000 anos de civilização anterior.
Mas não foram apenas a guerra e um governo dominador, punitivo e hierárquico, os instrumentos de fiscalização ideológica da androcracia, também a arte coloca-se a serviço dos “novos tempos”.
Toda mitologia, filosofia e legislação, da antiguidade clássica até o cristianismo, são voltados a fortalecer e legitimar a visão do patriarcado.
A revelação espiritual, que antes estava nas manifestações mais simples da natureza e, portanto, acessíveis a todos, tornam-se exclusividade de sacerdotes que “agora difundiam a palavra divina – a Palavra de Deus magicamente comunicada a eles -, tinham o apoio de exércitos, cortes de justiça e carrascos. Mas seu maior suporte era espiritual e não temporal. Suas armas mais poderosas eram as histórias e rituais “sagrados”, os decretos religiosos através dos quais sistematicamente inculcavam nas pessoas o medo de deidades terríveis, remotas e inescrutáveis” (pg. 138), que tinham que ser obedecidas.
Esses sacerdotes e as publicações que posteriormente eles utilizaram como veículo doutrinador tinham, além de espalhar a nova ordem a ser obedecida, apagar os vestígios da cultura da Deusa, relegando-a a um plano inferior e equívoco. Não é à toa que no gênesis, a serpente (símbolo da Deusa), aconselha Eva (a primeira mulher) a desobedecer as ordens de um deus masculino. A árvore do conhecimento também era associada à Deusa e comer de seus frutos traria a revelação. Não é sem propósito que aí esteja a origem de todo o pecado e que as mulheres passem a herdar dessa desobediência a dor e a submissão aos homens.
Juntamente com a cultura da espada emerge um pensamento que a justifica e empodera: o conhecimento é mau, o nascimento é sujo e a morte é sagrada. O símbolo máximo da religiosidade cristã é a martirização pela tortura, o sacrifício e a morte na cruz.
O pensamento que se apodera é da androcracia, neologismo empregado para designar o governo de homens, que pode se opor à gilania, que pode ser traduzida como um sistema de funcionamento que obedece aos princípios femininos.
A gilania não é portanto um governo em que a ordem seja de mulheres, como se dá na oposição entre o patriarcado e o matriarcado, mas em uma forma de organização em que a parceria e o cuidado são os fundamentos.
A androcracia é a ideologia por trás da cultura judaico-cristã, e posteriormente da islâmica, no entanto, o advento de Jesus, gentil e compassivo, acaba por ser uma marca gilânica em meio as normas ocidentais. O novo testamento traz registros contundentes tanto da filosofia cristã quanto do modus operandi daquele que seria o salvador. Não foi por acaso que foi, como toda ideologia ligada à parceria, assassinado, a fim de que seu exemplo promovesse temor entre seus seguidores.
A valorização de Maria Madalena, no novo testamento, que, embora seja abordada como impura, não deixa de ser uma figura emblemática da religiosidade cristã, é uma prova de que o papel da mulher, aos olhos de Jesus, era fundamental para nosso religare. Há indícios de que Maria Madalena foi um importante pilar do cristianismo, após a morte de Jesus.
Na realidade, ao longo da história, há flutuações entre a cultura gilânica e a androcrática. Governos que adotam posturas mais “femininas” cujo enfoque dá-se pelo bem comum em oposição á grande tomada de poder. Esse movimento acontece relativamente como uma onde. De qualquer forma, o que tem prevalecido nos últimos 6000 anos é a cultura da espada, com alguns momentos de inspiração de parceria.
O século XX nasce com uma égide do cuidado: a luta pelos direitos humanos, pelo direito ao voto, equiparação salarial, a busca de posturas mais sustentáveis, demonstram que a humanidade começa a mostrar sua natureza ligada ao cuidado não apenas com seu semelhante, mas consigo próprio e com o planeta.
Há uma recodificação do panteão que, a partir dessas influências, começa a obedecer uma hierarquia. Um Deus masculino belicoso e punitivo prevalece a todas as demais divindades. Ele se torna inatingível, e não mais parte natural da existência, e sua vontade prevalece aos humanos.
Essa ordem cooperativa é abalada quando os nômades que vagavam pelas áreas periféricas e mais cobiçadas do globo começam a se deslocar em busca de pastagem para seu gado. O elemento comum a todos esses povos é o modelo dominador de organização social

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

AONDE VOCÊ VAI, PAPAI?

Ontem, 17/11/2011, a presidenta Dilma Roussef lançou o Plano Nacional da Pessoa com deficiência promovendo uma série de ações que contemplem essa população.
Lembrei-me então de um livro chamado AONDE VOCÊ VAI, PAPAI? (Editora Intrínseca), do francês Jean-Louis Fournier.
É o relato da experiência de um pai com seus dois filhos com deficiências motoras e neurológicas.
É um livro muito difícil de ser contado por seu tom absolutamente desconcertante. 
Nosso álbum de família tem pouquíssimas fotos.
Não temos muitas imagens deles, nem vontade de mostrá-los. Uma criança normal é fotografada de todos os ângulos, em todas as poses, em todas as ocasiões; nós a vemos quando apaga a primeira vela, quando dá os primeiros passos, quando toma o primeiro banho. Olhamos para ela enternecidos. Acompanhamos passo a passo seus progressos. Mas não temos vontade de acompanhar a ruína de um menininho deficiente.
O livro é escrito em primeira pessoa, como se você estivesse lendo uma carta onde o autor revela a sua incapacidade de superar a sua decepção em ter se tornado pai de Mathieu e Thomas. Não há espaço para chavões de superação ou de olhar apreciativo sobre a deficiência. Ele é cru, queria ter tido dois filhos normais para ter uma vida de pai normal. Ele ironiza isso dizendo que nunca terá que ter as preocupações de outros pais sobre o futuro profissional dos filhos, a adequação da conduta, as más companhias.
Ainda estamos engatinhando no caminho do olhar sobre a deficiência, porque também estamos longe de valorizarmos a diversidade. Tudo que é diferente precisa ser eliminado, amassado, esticado, lipoaspirado, torcido para que enfim caiba numa forma única daquilo que é considerado normal.
E o normal é um conceito tão inatingível que ninguém, eu digo ninguém mesmo (nem a Gisele Bündchen) consegue bater no peito e dizer tranquilamente: eu sou uma pessoa inteira, não há nada em mim que deva ser mudado.
Há uma centena de livros que dizem tudo que você precisa fazer para ser mais parecido com aquilo que as pessoas querem que você seja. As mesmas pessoas que lêem os livros e também querem ser aquilo que talvez você espere delas. É uma busca constante por uma perfeição que simplesmente não existe. Fournier não está fora disso. Ele busca um par de filhos que sejam encantadores como as crianças do comercial de margarina, mas eu preciso dizer uma coisa: o meu filho, que é encantador, não é como as crianças do comercial de margarina, às vezes ele faz coisas que me tiram do sério, que me surpreendem, que me irritam, que me desassossegam.
Porque a vida é desassossego, é transformação. Mas não é essa a nossa carga cultural.
Há uma indústria muito grande movimentada pela insatisfação humana e não me refiro apenas às roupas, cosméticos e cirurgia plástica. A ocupação que fazemos do planeta já é a prova da nossa insatisfação com a natureza: temos que colocar cada vez mais concreto, tornar o solo cada vez mais impermeável e construir casas cada vez mais altas apenas para ter uma bela visão da natureza.
Não precisaríamos de um plano de governo específico para pessoas com deficiência se simplesmente as considerássemos aquilo que são: cidadãs.
Às vezes a gente dá uma volta bem grande para chegar num ponto muito próximo.
Pois é, aonde nós vamos, papai?
Esse é o tom.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

SOBRE HOMENS E LOBOS

O biólogo chileno, Humberto Maturana, em seu livro AMAR E BRINCAR – FUNDAMENTOS ESQUECIDOS DO HUMANO (Editora Palas Athena) formula uma teoria bastante coerente sobre como os lobos adquiriram a alcunha de algozes da humanidade, figurando como vilões nos contos de fadas e demais histórias infantis. Vou resumir o que ele diz:
No início, todos os povos do paleolítico eram nômades e faziam constantes movimentos migratórios a fim de conseguirem abrigo e alimento. Eram basicamente coletores, mas também se dedicavam alguma atividade para a caça. Essas populações humanas, que não passavam de pequenas tribos, acompanhavam as manadas no seu deslocamento e, com isso, tinham certa garantia de subsistência. No entanto, não eram os humanos os únicos predadores a acompanhar essas manadas, havia outros animais que também tinham na caça sua principal fonte de alimento, dentre eles os lobos.
Lobos e homens partilhavam harmonicamente o espaço, sem disputá-lo, ora os homens abatiam a caça, ora eram os lobos. É importante lembrar que eram tempos difíceis e o fato de não ser bem sucedido em uma caçada podia representar a morte de alguns indivíduos no bando, de cá ou de lá.
Eis que um dia, na disputa pelo alimento, algum humano resolve afugentar os lobos, a fim de que ele se afaste da manada.
Este ato determina uma mudança no emocionar daquele ser humano que, naquele momento, reconhece o sentimento de posse.
A sugestão de Maturana é que, até ali, as populações humanas não tinham experimentado o emocionar da apropriação e que reconheciam os direitos dos lobos como comensais.
O ato de um único homem de afugentar os lobos, não determina uma transformação da cultura, mas é o início de um processo que se instala na rede de conversações.
Na próxima caçada, este homem orienta seu companheiro a auxiliá-lo para que afugente os lobos. Esse ato vai se tornando mais vultoso até que seja uma prática de caça.
Note que há uma mudança no emocionar, não apenas o sentimento de posse, mas também o de superioridade, do “eu tenho mais direito a essa caça que você”, começa a florescer.
Essa rede de conversações evolui, a prática passa a ser cotidiana, até que alguém mata o lobo a fim de negar-lhe a caça. É importante que se observe não a morte em si, mas o emocionar que a acompanha: os homens estavam acostumados a matar animais, esse é o pressuposto da caça, no entanto, o emocionar muda completamente, o respeito pelo animal morto, pelo que ele representa. Matava-se pela subsistência e não pela exclusão. A emoção que acompanha o ato de matar um lobo para negar-lhe o alimento é completamente diferente de matar-se um animal e usá-lo como alimento. No segundo caso, a morte faz parte de um sistema ecológico, no primeiro faz parte de uma relação de domínio.
A partir daí os homens passaram a cercar suas manadas e transformaram-se em pastores.
O biólogo chileno, Humberto Maturana, em seu livro AMAR E BRINCAR – FUNDAMENTOS ESQUECIDOS DO HUMANO (Editora Palas Athena) formula uma teoria bastante coerente sobre como os lobos adquiriram a alcunha de algozes da humanidade, figurando como vilões nos contos de fadas e demais histórias infantis. Vou resumir o que ele diz:
No início, todos os povos do paleolítico eram nômades e faziam constantes movimentos migratórios a fim de conseguirem abrigo e alimento. Eram basicamente coletores, mas também se dedicavam alguma atividade para a caça. Essas populações humanas, que não passavam de pequenas tribos, acompanhavam as manadas no seu deslocamento e, com isso, tinham certa garantia de subsistência. No entanto, não eram os humanos os únicos predadores a acompanhar essas manadas, havia outros animais que também tinham na caça sua principal fonte de alimento, dentre eles os lobos.
Lobos e homens partilhavam harmonicamente o espaço, sem disputá-lo, ora os homens abatiam a caça, ora eram os lobos. É importante lembrar que eram tempos difíceis e o fato de não ser bem sucedido em uma caçada podia representar a morte de alguns indivíduos no bando, de cá ou de lá.
Eis que um dia, na disputa pelo alimento, algum humano resolve afugentar os lobos, a fim de que ele se afaste da manada.
Este ato determina uma mudança no emocionar daquele ser humano que, naquele momento, reconhece o sentimento de posse.
A sugestão de Maturana é que, até ali, as populações humanas não tinham experimentado o emocionar da apropriação e que reconheciam os direitos dos lobos como comensais.
O ato de um único homem de afugentar os lobos, não determina uma transformação da cultura, mas é o início de um processo que se instala na rede de conversações.
Na próxima caçada, este homem orienta seu companheiro a auxiliá-lo para que afugente os lobos. Esse ato vai se tornando mais vultoso até que seja uma prática de caça.
Note que há uma mudança no emocionar, não apenas o sentimento de posse, mas também o de superioridade, do “eu tenho mais direito a essa caça que você”, começa a florescer.
Essa rede de conversações evolui, a prática passa a ser cotidiana, até que alguém mata o lobo a fim de negar-lhe a caça. É importante que se observe não a morte em si, mas o emocionar que a acompanha: os homens estavam acostumados a matar animais, esse é o pressuposto da caça, no entanto, o emocionar muda completamente, o respeito pelo animal morto, pelo que ele representa. Matava-se pela subsistência e não pela exclusão. A emoção que acompanha o ato de matar um lobo para negar-lhe o alimento é completamente diferente de matar-se um animal e usá-lo como alimento. No segundo caso, a morte faz parte de um sistema ecológico, no primeiro faz parte de uma relação de domínio.
A partir daí os homens passaram a cercar suas manadas e transformaram-se em pastores.
Essa mudança no emocionar pastoril passa a contaminar todas as operações da vida humana por meio de uma rede de conversações que suscitam:
a)    Relações de apropriação e exclusão, inimizade e guerra, hierarquia e subordinação, poder e obediência;
b)    Desconfiança ativa e desejo de dominação e controle;
c)    Abundância unidirecional, valorização da procriação e o crescimento ilimitado;
d)    Fragmentação em relação ao sistema ecológico.

O mais importante é observar que essa mudança no emocionar constrói paulatinamente princípios éticos. O ethos da partilha cede para uma cultura de dominação.
E foi assim que os lobos viraram maus.

TRADIÇÃO ORAL

Uma coisa puxa a outra e, já que falei da reunião de contos russos feita por Pierre Gripari nos CONTOS DA RUA BROCÁ, lembrei-me de uma coleção de contos de fada da Editora Landy.
Há dois volumes dedicados a reunião de CONTOS DE FADAS RUSSOS.
O mais interessante de se conhecer as histórias da tradição oral de um povo, é perceber a sutileza de princípios éticos que norteiam a construção dessas histórias e, por conseguinte, passam adiante a formação cultural desse povo.
Contar histórias não é apenas a transmissão de um faz-de-conta, é um poderosíssimo (o superlativo não é à toa) instrumento de formação de princípios.
Por exemplo, há neste livro um conto muito interessante chamado BRANCA DE NEVE E A RAPOSA no qual uma bela jovem, criada pelos avós, sai com os amigos em uma alegre expedição pela floresta. Distraída com amoras e arbustos, a jovem se perde da comitiva e vê-se sozinha na floresta quando começa a escurecer. Ela sobe em uma árvore e fica a lamentar o seu destino. Um urso, ao perceber a angústia da menina, aproxima-se e oferece ajuda. Ela recusa por temor ao urso. Um lobo faz a mesma oferta e ela também recusa, pelo mesmo motivo. Uma raposa oferece ajuda e a menina aceita. A raposa a acompanha até a casa dos avós e pede, como recompensa por seus préstimos, uma galinha. Os avós dão a galinha, mas, na sequência, soltam um cachorro, a fim de espantar a benevolente raposa. E acaba o conto.
Há tanta informação sobre conduta e princípios neste conto que nem sei por onde começar. Tudo nele chama atenção: o fato da garota ser criada pelos avós e não pelos pais já tem uma carga enorme de significado que vão da importância dos anciãos, à ausência dos pais, possivelmente em função de uma sobrecarga de trabalho. Como é bastante difícil determinar a data em que foram criados contos de tradição oral e, sobretudo, o sem número de vezes que foram modificados pela boca de cada orador, fica difícil saber qual a circunstância histórica que fez com que se caracterizasse esse cenário de educação de uma criança. Mas, não é difícil de encontrar na história da Rússia, passagens em que os adultos jovens, e mesmo crianças, tivessem uma elevada carga horária de trabalho.
Outro aspecto identificável é que Branca de Neve é uma garota distraída, mas não ingênua, ao contrário de Chapeuzinho Vermelho, por exemplo, ela sobe no alto de uma árvore, a fim de dificultar o acesso de possíveis predadores, e só aceita a ajuda de um animal de pequena estatura, como uma forma de segurança, uma vez que ela garante uma certa igualdade de condições no caso de um embate.
Mas o aspecto que mais me chama atenção foi a paga que a raposa teve por ter ajudado a menina. Ela cumpriu com o prometido, mas, em contrapartida, foi açoitada por um cão.
Dizer que os avós de Branca são ingratos é muito pouco, porque esse conto mostra uma moral vigente na época em que foi contado: não confie em alguém mesmo que essa pessoa te faça o bem.
A raposa, assim como o lobo, simboliza o algoz e, mesmo que sua postura antagoniza esse papel, é tratado como tal.
Considero esse tema bastante atual. É só substituir a raposa por qualquer grupo excluído do convívio social dos considerados cidadãos de bem: negros, moradores de rua, catadores de lixo, enfim, imagine esse sujeito trazendo a jovem branca de classe média para casa. Como seria a reação?
A Rússia fica bem próxima, não é?

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

CONTOS DA RUA BROCÁ

Vou dividir uma paixão recente, um livro infantojuvenil fantástico chamado CONTOS DA RUA BROCÁ, do francês Pierre Gripari (Editora Martins Fontes, 218 páginas), não é nenhum lançamento, mas os livros se tornam importantes à medida que estamos abertos para lê-los. A idéia do livro em si já é fascinante, Gripari escreveu em colaboração com crianças, ou seja, não é apenas a visão do adulto, impregnada dos inevitáveis calos que a vida nos traz, que se nos apresenta página a página. Antes é o olhar que as crianças têm sobre o mundo. E todos os temas são tratados: vida, morte, nascimento, amor, resiliência, ética, valorização da mulher, enfim, tudo aquilo que acreditamos não ser assunto de crianças ali está tratado e de uma maneira simples e divertida. O aspecto que mais me chamou a atenção nos contos foi a sua proposição moral: não é maniqueísta. Há um conto chamado O DIABINHO BOM que é bastante perturbador neste sentido, porque coloca claramente que aspectos com ser bom ou mal são dados pela cultura. O diabinho, como o próprio título anuncia, quer ser bom e, portanto, é banido do inferno, por seu pai, por comportamento inadequado. Assim ele passa por inúmeras provações para conseguir ser aprovado no céu. A aceitação da diversidade também é um tema tratado neste conto. Outro conto que merece atenção é A FADA DA TORNEIRA, que traz uma surpreendente valorização da cultura pagã e questina os métodos de dominação utilizados pelos padres para submeter um vilarejo. O último conto NÃO-SEI-QUEM, NÃO-SEI-O-QUÊ é uma precisiosidade, o único que não foi escrito com as crianças, mas é a reunião de contos russos. Pierre Gripari foi um autor que povoou toda a minha infância e que voltou novamente à minha vida para povoar a infância do meu filho Pedro. É um autor para todas as idades e para todos os tempos. Boa leitura

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Escrever e ler

A leitura faz parte do nosso cotidiano. Não há como se esquivar. Lemos as placas de trânsito, os anúncios de promoção nas bancas dos supermercados, os nomes das ruas. Lemos até sem que haja palavras: um sorriso, uma lágrima, um punho cerrado, uma posição suspeita. Lemos o mundo e todos os seus sinais, gráficos ou não. E assim seguimos lendo e reproduzindo indefinidamente a nossa leitura. Mas essa não é uma leitura branca, ela está impregnada de significados que se relacionam com a vida e as experiências de cada um. Não é isenta de opiniões carregadas de concordâncias e discordâncias. Todo mundo tem algo a dizer sobre um acontecimento noticiado no jornal ou sobre a escolha profissional da filha da vizinha ou sobre a melhor maneira de governar o mundo. E isso acontece porque dentro há um mundo que muitas vezes se funde com o mundo que esta fora. De uma forma tal que não se sabe exatamente o que eu li que estava fora e o que já vinha dentro de mim, com a minha vida, com a minha história, com a história dos meus pais, avós, vizinhos etc. Proponho com esse neste espaço uma brincadeira: que identifiquemos o que está escrito por trás daquilo que estamos lendo. E para isso vale tudo: livros, artigos, filmes, vídeos, peças de teatro, enfim, tudo aquilo que seja capaz de fazer um recorte da vida e nos mostrar como funciona a nossa cultura que, segundo o biólogo Humberto Maturana, é a rede de conversações na qual estamos todos inseridos. Então, ampliemos a rede e conversemos. Beijos meus.