domingo, 20 de novembro de 2011

O nascimento da cultura de dominação, segundo Riane Eisler

É comum incorporarmos dados que são inerentes à cultura como parte da natureza humana, mas estamos falando de instâncias distintas, a nossa natureza diz respeito diretamente ao nosso instinto de sobrevivência individual e de preservação da espécie. Mas como foi que construímos uma cultura que nos desloca da nossa natureza, uma vez que atuamos no meio de forma tão violenta?
A socióloga Riane Eisler, em seu livro O CÁLICE E A ESPADA (Editora Palas Athena) dá uma boa pista para reconhecermos esse processo.
Em seu livro, Eiler nos apresenta que quando os primeiros homens começaram a se questionar sobre de onde viemos, possivelmente ligaram nossa origem na terra ao ventre das fêmeas, uma vez que o fenômeno do parto se instaurava como uma analogia a própria criação, daí ser absolutamente compreensível que a primeira imagem humana cultuada fosse de uma Deusa.
“De fato, personificado pela Deusa, o tema da unidade de todas as coisas na natureza parece permear toda a arte do Neolítico, pois neste período o poder supremo que governa o universo era uma Mãe divina que dava vida a seu povo, oferecia a ele alimento material e espiritual, e, mesmo na morte, não deixava de receber seus filhos de volta a seu ventre cósmico.”
Os kurgan, povos indo-europeus ou arianos, o povo que será referência futura à Hitler, invadem as áreas próximas aos rios e trazem seus deuses masculinos da guerra e das montanhas. Esses povos desenvolveram a noção de propriedade, ao longo dos anos, pela hostilidade do ambiente em que viviam, frio, infértil e montanhoso.
“O valor supremo reinando do cerne do sistema dos invasores era o poder tirar a vida, e não o de dar a vida.”
A espada torna-se o símbolo do poder supremo, do secular e do sagrado.
A visão que se aprende na escola é de que estes povos guerreiros são o berço da civilização ocidental, ignorando completamente todo legado trazido por, pelo menos, 4000 anos de civilização anterior.
Mas não foram apenas a guerra e um governo dominador, punitivo e hierárquico, os instrumentos de fiscalização ideológica da androcracia, também a arte coloca-se a serviço dos “novos tempos”.
Toda mitologia, filosofia e legislação, da antiguidade clássica até o cristianismo, são voltados a fortalecer e legitimar a visão do patriarcado.
A revelação espiritual, que antes estava nas manifestações mais simples da natureza e, portanto, acessíveis a todos, tornam-se exclusividade de sacerdotes que “agora difundiam a palavra divina – a Palavra de Deus magicamente comunicada a eles -, tinham o apoio de exércitos, cortes de justiça e carrascos. Mas seu maior suporte era espiritual e não temporal. Suas armas mais poderosas eram as histórias e rituais “sagrados”, os decretos religiosos através dos quais sistematicamente inculcavam nas pessoas o medo de deidades terríveis, remotas e inescrutáveis” (pg. 138), que tinham que ser obedecidas.
Esses sacerdotes e as publicações que posteriormente eles utilizaram como veículo doutrinador tinham, além de espalhar a nova ordem a ser obedecida, apagar os vestígios da cultura da Deusa, relegando-a a um plano inferior e equívoco. Não é à toa que no gênesis, a serpente (símbolo da Deusa), aconselha Eva (a primeira mulher) a desobedecer as ordens de um deus masculino. A árvore do conhecimento também era associada à Deusa e comer de seus frutos traria a revelação. Não é sem propósito que aí esteja a origem de todo o pecado e que as mulheres passem a herdar dessa desobediência a dor e a submissão aos homens.
Juntamente com a cultura da espada emerge um pensamento que a justifica e empodera: o conhecimento é mau, o nascimento é sujo e a morte é sagrada. O símbolo máximo da religiosidade cristã é a martirização pela tortura, o sacrifício e a morte na cruz.
O pensamento que se apodera é da androcracia, neologismo empregado para designar o governo de homens, que pode se opor à gilania, que pode ser traduzida como um sistema de funcionamento que obedece aos princípios femininos.
A gilania não é portanto um governo em que a ordem seja de mulheres, como se dá na oposição entre o patriarcado e o matriarcado, mas em uma forma de organização em que a parceria e o cuidado são os fundamentos.
A androcracia é a ideologia por trás da cultura judaico-cristã, e posteriormente da islâmica, no entanto, o advento de Jesus, gentil e compassivo, acaba por ser uma marca gilânica em meio as normas ocidentais. O novo testamento traz registros contundentes tanto da filosofia cristã quanto do modus operandi daquele que seria o salvador. Não foi por acaso que foi, como toda ideologia ligada à parceria, assassinado, a fim de que seu exemplo promovesse temor entre seus seguidores.
A valorização de Maria Madalena, no novo testamento, que, embora seja abordada como impura, não deixa de ser uma figura emblemática da religiosidade cristã, é uma prova de que o papel da mulher, aos olhos de Jesus, era fundamental para nosso religare. Há indícios de que Maria Madalena foi um importante pilar do cristianismo, após a morte de Jesus.
Na realidade, ao longo da história, há flutuações entre a cultura gilânica e a androcrática. Governos que adotam posturas mais “femininas” cujo enfoque dá-se pelo bem comum em oposição á grande tomada de poder. Esse movimento acontece relativamente como uma onde. De qualquer forma, o que tem prevalecido nos últimos 6000 anos é a cultura da espada, com alguns momentos de inspiração de parceria.
O século XX nasce com uma égide do cuidado: a luta pelos direitos humanos, pelo direito ao voto, equiparação salarial, a busca de posturas mais sustentáveis, demonstram que a humanidade começa a mostrar sua natureza ligada ao cuidado não apenas com seu semelhante, mas consigo próprio e com o planeta.
Há uma recodificação do panteão que, a partir dessas influências, começa a obedecer uma hierarquia. Um Deus masculino belicoso e punitivo prevalece a todas as demais divindades. Ele se torna inatingível, e não mais parte natural da existência, e sua vontade prevalece aos humanos.
Essa ordem cooperativa é abalada quando os nômades que vagavam pelas áreas periféricas e mais cobiçadas do globo começam a se deslocar em busca de pastagem para seu gado. O elemento comum a todos esses povos é o modelo dominador de organização social

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